Guy de Maupassant teve sua maestria reconhecida tardiamente. Somente hoje, mais de um século depois da década de 1880, justamente os dez anos nos quais ele construiu praticamente toda a sua obra (mais de trezentos contos e seis romances, além de peças de teatro, poesias, crônicas, críticas artísticas e correspondências com vários interlocutores), pode-se avaliar o alcance e a importância de seu legado.
Imperdível, delicioso e de leitura agradável
Maupassant, além de um clássico (gostoso de ser lido, com qualidade atestada pelo tempo), é um escritor que retrata a modernidade e a dependência da tecnologia que nós humanos nos impusemos sob a bandeira da liberdade.
Cada conto é uma delícia, uma obra que faz refletir e que dá prazer. Um livro que não se deve deixar de ler.
Saiu na Imprensa:
O Globo / Data: 22/8/2009
A arte de encantar
Contos de Maupassant cativam pela prosa simples e bela
125 CONTOS DE GUY DE MAUPASSANT, Tradução de Amílcar Bettega, Companhia das Letras, 824 páginas. R$ 55
Ivo Barroso
Uma seleção de 125 contos de MAUPASSANT, GUY DE, escolhidos por Noemi Moritz Kon e traduzidos por Amílcar Bettega, traz-nos de volta um autor que, por várias décadas, foi o ícone desse gênero literário. Não se podia falar em conto sem que o nome de Maupassant aparecesse como o grande inovador do gênero, e mesmo como o criador da narrativa moderna.
É verdade que, em pleno apogeu da produção maupassiana, na década de 1880, Baudelaire já tinha revelado aos franceses a genialidade narrativa de Edgar Allan Poe, uma das grandes fontes de inspiração (e imitação) de Maupassant. Mas o aparecimento de Guy, depois de um longo período de maturação, sob a égide e o rigor criativo de Flaubert, aconteceu de maneira tão estrepitosa que seu nome foi guindado imediatamente à categoria de mestre da história curta. Cativando a maioria dos leitores das narrativas estampadas em jornais e revistas, Maupassant logo se tornou o autor que todos teriam a obrigação de conhecer para se mostrar em dia com as novidades literárias.
Dicas de Flaubert ajudaram a elaborar estilo rigoroso
Nascido em 1850, Guy de Maupassant ainda jovem já demonstrava inclinação para a literatura, mas graças à intervenção de Flaubert, amigo íntimo da família de sua mãe (e, possivelmente, seu pai biológico, segundo hipótese do biógrafo Michael G. Lerner), desenvolveu suas qualidades ao passar à condição de protegé do grande escritor, que o submeteu a um rigoroso aprendizado, proibindo-o de editar qualquer coisa que não fosse considerada definitiva. Assim, só em 1880 publica seu primeiro conto (“Bola de sebo”), que recebeu a consagração pública de Flaubert, até então muito rigoroso no julgamento dos trabalhos do discípulo.
Nos dez anos seguintes, Maupassant escreveu cerca de 300 contos, seis romances, um volume de versos, três impressões de viagens e algumas peças de teatro. Disputado pelos jornais, revistas e editoras, alcançou nesse período o status de escritor que enriquece exclusivamente através do trabalho literário. Frequentador dos salões nobres, amante das grandes cortesãs e das mulheres fatais da alta sociedade de seu tempo, mobiliou com luxo nababesco um apartamento em Paris, teve iate e casa de campo no Mediterrâneo. Sua glória só é ofuscada quando, em decorrência da sífilis, sofre ataques de depressão e enfrenta períodos de loucura (de que tinha consciência e que explora em alguns de seus contos). Morre aos 43 anos, em consequência de uma paralisia provocada por uma tentativa de suicídio. Houve quem atribuísse esse infortúnio à vida desregrada do autor, que deixou sem perfilhar três de seus descendentes.
Flaubert considerava “Bola de Sebo” uma obra prima. Que dirão os críticos de hoje, depois do aparecimento de tantas tendências literárias envolvendo o gênero conto? Depois de James Joyce e Virginia Woolf, depois de Gogol e Tchekov, depois do “conto psicológico”, do “conto fantástico”, do “conto sócio-político”, etc. etc? Baseado no conceito que atribuía a Flaubert, de que “só existe um modo de exprimir uma coisa, uma só palavra para dizê-la, um só adjetivo para qualificá-la e um só verbo para animá-la”, Maupassant foi um autor que passou a vida procurando a simplicidade objetiva, sem chegar a consolidar um estilo. É um narrador de fatos, quase um fotógrafo dos acontecimentos, apresentando-os sem comentários, sem tirar ilações. Transforma em conto uma anedota ou um caso, sem exagerar na roupagem estilística, sem fazer deles uma obra literária. O resultado é quase sempre admirável.
Todo o valor cabe à simples narrativa, ao desenvolvimento linear, ora enriquecido de uma inversão da expectativa, de um desdobramento inesperado. Incensado e controvertido em seu tempo, a Maupassant foi em geral negada a condição de gênio, ou de êmulo de Flaubert, e as referências ao seu talento não raro se associam a limitações à sua criatividade.
Apesar de tudo, formou-se em torno de sua figura e de sua obra todo um nicho de admiração, uma universidade de estudos, teses, biografias, clubes e cultos, que vão do levantamento exato do número de suas amantes à quantidade dos vocábulos que usou em sua obra. Houve época em que era a mais editada em todo o mundo, e ele foi imitado, plagiado, abundantemente traduzido e até mesmo falsificado. Ficou célebre a história da mistificação conhecida em francês por Le canular du Corbeau, que começa com o aparecimento, em 25 de outubro de 1912, de um artigo em La Grande Revue, intitulado “Guy de Maupassant íntimo — notas de uma amiga”, no qual certa Madame X revela suas relações amorosas com o escritor, que lhe teria deixado alguns inéditos, principalmente cartas. Esse primeiro artigo foi seguido de outros, estendendo as confidências e revelando novas cartas amorosas.
Lendas sobre autor incluem cartas amorosas forjadas
Tal era a aparência de autenticidade delas que, mesmo antes de se apurar sua autoria, as notas foram largamente transcritas na famosa edição da Pléiade, servindo de base a várias afirmações biográficas. Tempos depois, um estudioso do autor, Leon Deffoux, afirmou que as notas eram autênticas e devidas a Hermine Lecomte du Noüy, sabidamente uma das grandes “amigas” de Maupassant. Mas a 10 de julho de 1932, aparece no Esprit Français um artigo de certo Aurèle Patorni, anunciando a morte de Adrien Le Corbeau, escritor de origem romena e tradutor de Maupassant, que seria o verdadeiro autor das cartas apresentadas por Madame X. Jacques Bienveny, hoje o grande estudioso de assuntos ligados a Maupassant, fez levantamentos estilísticos e cronológicos nas referidas peças, concluindo ter sido realmente Le Corbeau o autor da mistificação. Apesar de tudo, embora admitindo a possibilidade de fraude, a edição da Pléiade não retirou as citações de que se utilizara como atestados biográficos.
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